sábado, 26 de setembro de 2009

Revisão dos trinta

Dizem-me que é a revisão dos trinta, mas a verdade é que os olhos me andam a enganar, em grave conluio com outras maleitas que não matam, mas moem, devagarinho, num roçar de pedra com pedra. No médico alertam-me para as dioptrias recém detectadas da miopia, que assim se junta ao astigmatismo. Nada de próteses que é para não ganhar um olho mandrião, tome lá é a receita para ir à farmácia. Nunca esperei ter de pagar por lágrimas, muito menos artificiais. Já não bastam as que se engolem para agora andar de pingo emprestado na carteira. Desperdício, este, o da vida adulta, em que como crocodilos, desta feita sérios e sensatos, desperdiçamos as originalmente tragadas para as embaladas, clinicamente testadas e socialmente aceites.

Falta-me lágrima, dá-me um minuto que tenho que gotejar para o olho cansado e estéril. Assim já te olham nos olhos, sabendo a artificialidade do momento. Fosse ela, a lágrima H2O + NACL do nosso ADN, e mudaria de vestes o momento e já não te olhariam nos olhos. Porque é vergonha chorar ou porque nos envergonha ver chorar e não agir, ou porque isso te lembra a durabilidade humana e o grotesco dos sentimentos.

Desta feita há que ver o copo meio cheio: tenho aval médico e farmacêutico para as lágrimas, reptilianas ou nem por isso. Nem por isso… nem sempre por isso ou aquilo. Porque é humano, bastar-nos-á. Nesse alento posso provar que a seca do meu olhar se esboroa em lágrimas híbridas nos dias correntes em que flutua a memória da ausência e da orfandade. Há um ano desaguámos os nossos últimos olhares entre o silêncio ensurdecedor de máquinas friamente presentes. Fiz-me de razão, que conseguia emprestar a quem quer que me abordasse, maquinalmente aguentei as horas que se seguiram, em nome da racionalidade, a mesma que hoje me rouba a condição humana.

Dizem-me que é a revisão dos trinta. Não é dor nem saudade o que se sente: são os ajustes dos parafusos e dos cilindros, tão somente. Imensa carapaça metálica que blinda o que de mais belo podemos ter na vida: os sentimentos. Não há que temer... é a vida.

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